27 dezembro 2007

O que são racismo e etnicidade?

Certos tipos de comentários racializantes regressados a este blogue por via de comentários, levam-me a recordar passagens de um livro meu sobre racismo e etnicidade, produto de uma pesquisa que dirigi em cinco cidades do país há oito anos:
"Os seres humanos não nascem egoístas, racistas ou étnicos. Eles tornam-se nisso devido às lógicas combinadas de três fenómenos: interacção social, disputa de recursos de poder e educação. É aqui que se tecem os sistemas de referência e os meandros categoriais, é aqui que crescem, se consolidam e se tornam naturais os jogos de alteridade, que se desenvolvem o racismo e a etnicidade, é aqui que o bom senso deixa de ser, como queria Descartes, a coisa melhor partilhada do mundo.
A multiplicidade fenoménica da vida obriga os seres humanos a produzir quadros e categorias simplificadoras do social.
A vida humana é, em grande medida, uma constante disciplina do pormenor, da incerteza e da dúvida. Essa disciplina opera, normalmente, através de três movimentos: o movimento do julgamento retrospectivo (do género "se assim foi no passado, sempre assim será"), o movimento da indução simplificadora (trata-se do "efeito do corvo negro": se encontramos um corvo negro, somos tentados a supor que todos os corvos são negros) e o movimento infra-intelectual da precedência afectiva (primeiro os nossos, depois os outros).
É com esses três movimentos que naturalizamos o que é socialmente produzido. E fazemo-lo apenas com alguns indícios, com alguns dados. Com meia dúzia de fragmentos enfrentamos o futuro, com o que temos atrás vamos ao encontro do que está à frente. Os hábitos são a chave que abre e domestica o imprevisto. Na verdade, face às coisas novas, somos tentados a reconduzi-las, rapidamente, às coisas velhas.
Toda a nossa vida é a conversão do desconhecido ao conhecido. Quando entramos em contacto com o Outro, apresentamo-nos como o coágulo instintivo de milhares de percepções social e culturalmente trabalhadas e armazenadas. O que julgamos ser natural, é, afinal, socialmente trabalho e construído, como se em nós houvesse uma espécie de genética social.
Racismo e etnicidade têm, aí, na sua elementaridade e na sua funcionalidade, um campo de acção exemplar. Na verdade, eles apelam, ao mesmo tempo, para uma essencialidade original e para uma especificação de diferença irredutível supostas preceder a interacção social. No racismo actua-se por marcadores físicos elementares - é a racialização do social; na etnicidade, por marcadores simbólicos (língua, "costumes", anterioridade de chegada a um território, heróis epónimos) da comunidade imaginada de origem - é a etnicização da identidade. Num caso temos a visibilidade somática, no outro a visibilidade da história. Em ambos faz-se a apologia de um certo tipo de superioridade, seja de origem, seja de características intelectuais e morais, seja de ambos ao mesmo tempo. É racista quem defende a superioridade genética de um grupo; é étnico quem defende a superioridade da sua comunidade imaginada de origem. Ambos procuram monopolizar os recursos de poder em função de marcadores, pigmentação num caso, comunidade imaginada de origem no outro.
Racismo e etnicidade são exercícios de inclusão/exclusão sociais que, interiorizados e assumidos, funcionam como os semáforos (o verde para os nossos, o vermelho para os outros). Ambos erigem sistemas acabados de verdades do dia-a-dia em referenciais de conduta e atribuição instintiva de significado social, cuja característica é de comportarem como tropismos sociais, federando atitudes, unindo comportamentos e estabelecendo fronteiras intolerantes entre os seres humanos.
À força de se sentir o diverso e de o produzir como símbolo e acto, atinge-se a intolerância mesmo quando se faz a apologia multicultural. Tecemos e retecemos, então, com o ardor de Penélope, o espírito da casa fechada. Nos casos mais extremos e trágicos, aqueles da alteridade absoluta erigida em armas e extermínio, racismo e etnicidade dão origem a um corpo doutrinário para o qual se busca uma fundamentação científica."
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Adaptado de Serra, Carlos (dir), Racismo, etnicidade e poder. Um estudo em cinco cidades de Moçambique. Maputo: Livraria Universitária, 2000, pp. 20-22.

8 comentários:

Anónimo disse...

"...É racista quem defende a superioridade genética de um grupo; é étnico quem defende a superioridade da sua comunidade imaginada de origem..." Prof. eu acho que em Maputo temos muitos racistas e "etnicistas" de diversas raças e etnias a pergunta que gostaria de fazer ao prof é a seguinte: Em Maputo tem-se notado uma serie correntes inferiorizantes de diferentes tipos, o termo "Muxangana", "Xingondo" e Negro é muitas vezes usado num tom "pejorativo" analisemos os dois primeiros termos que por sinal são de uso intra-racial (entre "pretos"), a questão que me deixa curioso é que o grupo de chegou primeiro ou de origem "Marongas" é infinitamente insignificante em termos economicos e de padrão de vida relativamente a outros grupos que chegaram a Maputo movidos por trabalho e procura de melhores condicões de vida.Ora estamos aqui diante de uma superioridade relativa, artificial e complexa como é que o professor explica a existencia de racistas e étnicos na composição actual da população da cidade de Maputo. Estaremos diante de um novo fenomeno que nem os seus fazedores o conhecem?
Maxango

Carlos Serra disse...

Olá! Oiça, logo que estiver livre procurarei responder-lhe, está bem?

Anónimo disse...

Obrigado ficarei a espera de uma resposta.
Maxango

Carlos Serra disse...

Vamos lá então tentar um dos possíveis caminhos para uma resposta. Em primeiro lugar, teria gostado de estudar em profundidade os processos de etiquetagem (deixe-me dizer a coisa assim) na cidade de Maputo, quer dizer, os processos pelos quais classificamos os outros em maus e bons. Em segundo lugar e não tendo eu feito esse estudo, apenas me resta deixar aqui algumas ideias muito frágeis. Vamos lá ver: estamos numa cidade considerada, dentro e fora, pelos "originários" (considerados primeiros) e pelos vindos de fora, como a mais rica, a mais desenvolvida, a mais fascinante do país, sejam quais forem os critérios usados para a avaliação. Ora, por regra os grupos originários têm a tendência de classificar os "estrangeiros" como invasores, como usurpadores do seu bem-estar, dos seus privilégios. Por outras palavras, os "estrangeiros" são vistos como privando os "originários" dos seus recursos de poder (bem-estar, emprego, pureza de origem, de língua, etc.) Daí a desclassificação operada pelo termo "xingondo". Mas essa etiquetagem depreciativa (que pode ser um racismo sem raça) opera tb ao nível de outros centros urbanos na relação originário/estrangeiro. E opera mesmo ao nível dos grupos que, tendo sido estrangeiros, procuraram assimilar-se (e assim se têm) à cultura e aos valores locais dos "originários". Existem três processos de demarcação depreciativa: (1) os que se quedam ao nível da avaliação simbólica
(2) os que passam a uma acção ofensiva concreta com a tomada de medidas protectoras dos recursos de poder (privatização de cargos, de melhores salários, de prebendas, de títulos,etc.) e (3) os que passam a uma acção ofensiva eliminatória (destruição pela guerra, por exemplo, do ou dos grupos rivais). Deixe-me ficar por aqui por ora, na consciência de que as ideias apresentadas podem ser ampliadas. Pode dizer-e o que acha do que escrevi? Abraço.

Anónimo disse...

"...Pode dizer o que acha do que escrevi? Abraço..."
Deixe-me dizer que acho o Prof.um autêntico nudista dos enigmas sociais.
Voltando a questão oferece-me comentar os processos de demarcação depreciativa que o Prof faz mensão.
(1)Os que se quedam ao nivel da avalição simbolica
Acho que este processo é mais notório em pessoas menos alfabetizadas (constatação subjectiva) tenho o previlégio de conviver com uma multiplicidade de grupos sociais diferentes, por exemplo na universidade não me recordo de um dia ter assistido uma cena de exclusão etnica (por ser de lá ou daqui), mas já no bairro, na rua e no mercado(Dumba nengue) assisto com mais intensidade processos de exclusão/inclusão social.
A pergunta que me ocorre neste momento é a seguinte:
Estará o fenomeno racismo e etnicidade ligado a questões de escolaridade?

Passo agora a comentar o segundo Processo de demarcação depreciativa.
(2) os que passam a uma acção ofensiva concreta com a tomada de medidas protectoras dos recursos de poder (privatização de cargos, de melhores salários, de prebendas, de títulos,etc.)
Este processo remete-me a uma reflexão sobre uma outra epedemia que enferma o nosso país o problema dos lobies, das influencias e da reciprocidade de interesses no tecido laboral. Ora vejamos se os "não originarios" estão usurpando empregos, bem estar,pureza de origem, de lingua etc numa velocidade acelerada o grupo "originario" tende a perder expressão social e economica ao longo do tempo.Logo a manifestação do terceiro e ultimo processo de demarcação depreciativa "...(3) os que passam a uma acção ofensiva eliminatória (destruição pela guerra, por exemplo, do ou dos grupos rivais)..." pode ser também resultado de uma saturação etno-racial entre os Originarios e os não.
E dai pode resultar ainda que num futuro muito longiquo os não nativos passem a ser nativos dependendo da velocidade com que se reproduzem tanto em termos quantitativos como qualitativos (cultura, custumes, habitos etc)
Peço um comentario desta analise ao Prof.e uma resposta da pergunta cima.
Um forte abraço feliz ano novo.

Maxango

Carlos Serra disse...

Logo que puder tentarei responder...

Carlos Serra disse...

1) Pelo estudo que dirigi há uns anos atrás sobre racismo e etnicidade, verifiquei que havia uma co-relação forte entre percepção de racismo (por exemplo) e distribuição de riqueza. Por outro lado, verifiquei que o racismo não se aplicava apenas a pessoas de raça diferente, mas a pessoas da mesma raça (o argumento foi o de que quando pessoas da mesma raça enriquecem tornam-se racistas: este o exercício do "racismo sem raça". Todavia, precisaria de estudar Maputo bem mais profundamente, aplicando uma escala de atitudes com amostragem probabilístcia, isto é, com rigor matemático. Por agora, talvez não fosse má ideia defender a hipótese de que quanto maior for o bem-estar social das pessoas, mais abertas elas são ao Outro.
2. Quanto mais o Estado for Estado (deixe-me dizer assim as coisas), quanto mais independente ele for dos laços sanguíneos, de parentela, de amizade, de grupo,de partido, etc., mais difícil é, por hipótese, que possam ocorrer os fenómenos que aponta. Mas eu precisaria, repito, de tempo e de possibilidade para estudar os importantes fenómenos que aponta. Continuo à sua disposição para mais tentativas de resposta.
Forte abraço e retribuição de Ano Novo Feliz.

Anónimo disse...

Infelizmente passei o final do ano num lugar onde não pude ter acesso a internet razão pela qual não respondi a ultima intervenção do Prof. mas aqui aqui estou de volta espero que tenha passado bem o final do ano.

"...(2) Quanto mais o Estado for Estado... mais difícil é, por hipótese, que possam ocorrer os fenómenos que aponta..."

Agora digo: Quanto mais o Estado for Partido tanto menos será Estado.
Prof.eu tenho enormes dificuldades de falar de Estado em Moçambique, por outro lado fico assustado com a partidarização automatica do individuo que tenta fazer florescer este debate (Felizmente sou membro de nenhum partido)por isso julgo me credenciado para falar deste assunto com a maior isenção possivel.
Ora a questão que me ocorre é a seguinte: Como é que se explica o juizo partidarizante do cidadão Moçambicano quando se abordam assuntos do Estado (isto é quando falas algo as pessoas ocupam suas mentes tentando descobrir a que Partido politico pertences)o que é que motiva esse comportamento.

Será possivel a independencia partidaria do Estado na actual conjuntura politica?

Porquê o nosso Estado é temido será que ele é tirano, afinal o que é liberdade de expressão?Será que existe liberdade de expressão? Se existe deixe me dizer que o seu exercicio é muito arriscado.

Afinal o que é Estado o que é Partido será que é mesma coisa?

Aguardo pelo Prof.

Maxango